“O barco de cada um está em seu próprio peito”
Mia Couto / Provérbio Macua

No ano de 2019 eu estava me sentindo cansada e esquisita. Minha vida estava morna e sem sal. Como uma adulta que trabalhava sem parar, até comecei a achar que era normal viver assim. Olhei os meus horários e pensei em fazer uma atividade criativa na minha manhã de folga. Foi em uma pesquisa na internet que descobri a “Casa dos Quadrinhos”, uma escola de artes visuais. Pensei que se tivesse que ser, meus horários malucos iam acabar encaixando, e teria uma pequena possibilidade de dar certo. Quem sabe?
O ideal seria um lugar perto da minha casa, com aulas só uma vez por semana e uma mensalidade que coubesse no meu bolso. Pensei, que com tantas exigências, talvez essa jornada criativa ficasse fadada aos sonhos. Segui adiante! Fui pessoalmente na Casa e fui atendida pela Carol Cunha, gostei dela na hora. Além de me escutar com carinho e atenção, me explicou que, sim, eu poderia fazer só uma matéria uma vez por semana. Será que vocês conseguem imaginar a minha alegria? Acho que não!
O curso disponível no meu dia de folga era “Roteiro e criação de personagens”. Pedi para fazer uma aula experimental, sou bem detalhista na hora de investir o meu suado dinheirinho. Ela sugeriu que eu esperasse a hora do lanche e conversasse com a professora. Então a Rebeca Prado desceu.
Expliquei a minha formação e perguntei se eu daria conta. Ela sorriu e disse que sim. Ansiosa que sou, perguntei se iriamos desenhar muito. Ela me disse que iriamos ler e escrever muito. Fiquei tranquila, pois ler e escrever já era minha área. Fiz a matricula imediatamente. Lembrei do Guimarães Rosa e pensei que o tem que ser tem força, muita força.
Antes da Casa eu era acostumada a ler de doze a treze livros por ano. Lia de tudo e sem muita pretensão. Depois, como queria aguçar o meu olhar e fazer da escrita um ofício, passei a devorar obras e virei uma leitora voraz. Neste período comecei a frequentar bibliotecas e a virar uma leitora determinada.
Essa mudança foi leve e eu usava cada minuto disponível para enfiar o nariz nos livros. Sou daquelas alunas que lê todo o conteúdo programático oferecido pelo professor. Neste mesmo tempo soltei o meu traço. Antes eu só desenhava rostos de mulheres, e bem devagarinho. Aprendi a diversificar os desenhos e usar qualquer tipo de material.
Coincidiu que, em dezembro de 2018, eu mudei de bairro. Meu apartamento novo era próximo da Praça da Liberdade. Meu amor latente e profundo por este ponto turístico de BH só foi aumentando e se solidificando. Era comum eu sentar na praça depois de um dia pesado de obrigações e ficar admirando o ambiente, que para mim sempre foi mágico.
Os desenhos brotavam sem muito esforço. E eu sempre fui uma pessoa curiosa, que gosta
de observar ao meu redor. O processo foi muito natural.
A Rebeca me ensinou os arquétipos psicológicos dos personagens e a Jornada do Herói. Fiquei encantada e usei todos estes recursos no meu livro. Coloquei conflitos, fiz fichas para cada personagem e segui adiante.
Fiz tudo sem nem imaginar que um dia eu, uma simples professora, fosse capaz de publicar um livro. Eu só tinha certeza de que este universo me encantava. Fui trabalhando sem maiores perspectivas. O curso acabou e eu consegui finalizar com êxito. A Rebeca só me fez prometer que eu não ia parar de escrever. Lembro que no último dia de aula eu chorei de emoção com o feedback dela. Sentei no banco da praça e fiquei imaginando a Bibia passar para lá e para cá. Sou muito visual, só consigo escrever se eu conseguir imaginar ou desenhar. E assim o semestre passou.
Eu trabalhava em uma escola dando aulas de Inglês, mas vivia pentelhando a sala de artes. Lembro até hoje que o Marcos Bonfim me falou no corredor: “Solta! Vai! Tem muitas ideias dentro de você”.
E assim tive coragem de participar da avaliação de portfólio na Casa dos Quadrinhos. Fui na cara e na ousadia. Cheguei com uma bolsa imensa, com a história desenhada no papel. Me senti um dinossauro da pré-história, sem falar que o pessoal de lá era tipo uns dez anos mais jovem do que eu. Respirei! Olhei para o lado e só via as pessoas com o pen drive na mão. Juro que tentei esconder a bolsa que eu estava carregando o que foi em vão, ela era muito grande.
Suei de nervoso quando observei que o Vitor Cafaggi estava na roda de professores que iriam avaliar o meu trabalho. Mostrei os desenhos e vi o olhinho dele brilhar. Ele disse que o meu trabalho era muito rico e que ele estava vendo amor ali. Quase desmaiei! Ele me convidou para fazer o curso de Narrativa Visual, que era exatamente no meu dia de folga. Segui adiante, já um pouquinho mais confiante. Felizes são os caminhos da sorte!
No primeiro dia de aula, dei a história da Bibia escrita em escaleta para o Vitor. Ele só falou: Que chique! Depois me ensinou a não perder tempo escrevendo tanto à mão. Aprendi com ele a gostar do Stan Lee, e que sim, os sonhos são possíveis se a gente trabalhar duro para isso.
Neste curso nasceu o personagem Sr. Coelho e minha amizade com a Nami Vianna, que o ilustrou quando eu não consegui mais desenhar. O mais triste desta história foi que na última aula em que o Vitor ia me dar o feedback eu não pude comparecer. Eu tinha uma reunião no meu trabalho da época.
Com essa história de não ir no último dia de aula, a Bibia ficou na Casa dos Quadrinhos. Lá, ela permaneceu guardada dentro de uma pasta por um bom tempo, até eu ir buscá-la. Mal tinha nascido e já percebi que segurar a minha filha não ia ser uma tarefa muito fácil!
Nesse mesmo semestre, também na Casa, fiz um curso de Edição de Quadrinhos com o Sidney Gusman. Valeu cada centavo, pois agregou muito valor ao meu trabalho. Aprendi com o Sidney que o leitor tem que ter vontade de virar a página. Que, sim, temos que mostrar o nosso trabalho e passar credibilidade para os editores. Sidney é o maior devorador de quadrinhos que eu conheço.
De tanto que eu falava na minha filha Bibia ela começou a ter vida entre as pessoas com quem eu convivia. A parede do meu quarto era repleta de sketchs sobre ela. Quando eu e os meus sobrinhos passávamos pela Praça da Liberdade a gente gostava de brincar que tinhamos visto a Bibia lá. A Rafa, minha sobrinha, que na época era muito pequena, ficava brava e falava: “ Vamos dar outra volta, porque eu não vi!” Minha filha de papel ganhou um espaço no meu coração e na vida da minha família.
Então veio o ano de 2020. Continuei na Casa dos Quadrinhos, fazendo aulas de aquarela
com o Jean Paulo Lopes. Neste meio tempo veio a pandemia e minha vida virou de cabeça para baixo. Tive síndrome de Burnout e, a partir disso, fiz uma história com o Sr. Coelho, aquele personagem que já estava pronto.
Parei de lecionar inglês e voltei para a faculdade. Aprendi o oficio de pintar quadros e virei uma artista plástica. Comecei a trabalhar com arte em tempo integral e, então, peguei a história da Bibia que estava em HQ e a transformei em um livro com a ajuda da Rebeca Prado. Ela foi minha mentora neste processo. Trabalhei no livro no ano de 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023.
Refinamos a escrita, o olhar e os desenhos. Um livro tem o seu próprio tempo, independente da minha ansiedade. Tive momentos de altos e baixos e, bem aos poucos, a parte da escrita ficou pronta. Neste período comecei a alimentar um blog para prospectar o meu trabalho como artista plástica. Para a minha surpresa as pessoas o elogiavam bastante e recebi vários feedbacks positivos. O blog foi surgindo de mansinho e me fortalecendo como possível escritora. Era o oxigênio necessário para as horas em que eu tinha medo de continuar escrevendo.
Terminado o texto da Bibia, então era ilustrar! Eu não sabia desenhar cenários. Algumas horas eu ficava pensando que tinham muitos personagens e que eu não era uma
ilustradora de verdade. Pensei muitas vezes em dar as ilustrações para a Rebeca ou para a Nami. Chorei escondido e tive muita dor nas costas. Tive que me convencer que eu realmente ia dar conta da demanda. Não foi fácil!

Aprendi com a Yara Tupinambá que artista vive na corda bamba. A gente não sabe aonde vai pisar. Se vai dar certo ou não. Segui adiante com a ajuda e o incentivo da Rebeca, que foi minha mentora durante o processo da ilustração também.
Fiz vários cursos, que comprei na internet para ajudar com os desenhos.
Depois de tanto observar os trabalhos do Eduardo Vieira, decidi que ia ousar e usar técnica mista, sim. Eu tinha muitos lápis de cor e canetas esferográficas não faltavam, de todas as cores possíveis. Fiz a escolha e segui adiante!
Tenho pregada na frente da minha escrivaninha a carta que o escritor escreveu para a Julia, personagem do livro “Pequena coreografia do adeus”, da Aline Bei. Grifei com marca texto a parte “ A estrada será tenebrosa, dificílima, amarga e até impossível em muitos momentos, não vou mentir. ” Me cerquei de pessoas positivas que acreditam no impossível e trabalhei duro.
Mostrei a Bibia para um leitor experiente, que gostou da história. Fiquei aliviada, sentei na
praça, chorei, rezei, agradeci e então continuei o trabalho! Quem me conhece de verdade sabe que sou chorona! Me emociono quando vejo que consegui escrever e ilustrar um livro. Sabe um sonho que parece que não é verdade? É assim que me sinto!
Se eu vou conseguir uma editora? Não sei, mas acredito nos caminhos misteriosos da fé! O que posso falar e que passei por este mundo e deixei alguns quadros, um livro ilustrado e mais alguns personagens soltos. Agora, adoro escutar quando alguém pergunta qual é a
minha profissão. Respiro fundo, estufo o peito e respondo: "sou artista plástica, escritora, ilustradora e professora de artes!"
Em nome dos meus sonhos encaro todas as possibilidades criativas de trabalho. No dia que finalizei as ilustrações sonhei que eu estava dormindo no manto azul de Deus. Foi quase
impossível, mas com a ajuda de Deus, especificamente do Sagrado Coração de Jesus (que foi um quadro que pintei) consegui!

Não é que soltei a minha filha no mundo? Como disse Saramago: “O que seria de nós se não sonhássemos”.
Beatriz, Bibia, puxou a mãe e é muito independente. Com sua história cativante, ela teve forças para se mostrar. Eu só me inscrevi no Prêmio Kindle de Literatura Infanto Juvenil e quando levei um susto ela já estava à venda. Eu sei que não consigo segurar essa menina!
Espero que você, que está lendo este simples relato, tenha vontade de conhecer o meu livro "Liberdade"! No momento ele está disponível online, pela Amazon. Você pode adquirir o seu através do link abaixo:
E você, que tal transformar a Bibia na sua primeira leitura de 2025? Me conte o que achou, eu vou adorar saber!
Forte abraço,
Sânia Fagundes
Ler a sua história só aumenta a admiração que tenho por você, pela sua força e honestidade consigo mesma. Parabéns! Que tudo continue fluindo lindamente nos caminhos que você escolher. Um abraço carinhoso
Adorei conhecer sua estória !